segunda-feira, 24 de junho de 2013

Reflexão sobre um dos quatro As de Tim Ingold














Reflexão sobre um dos quatro As de Tim Ingold
Por
Vítor Oliveira Jorge e
Florbela Estêvão

No início do seu livro recente “Making: Anthropology, Archaeology, Art and Architecture”, Tim Ingold (London, Routledge, 2013, pp. 10 e 11) refere-se ao facto de ter iniciado na Universidade de Aberdeen um curso designado, na gíria, “Os quatro As”, reportando-se às quatro disciplinas que dão título ao livro. E nesse passo,  no que toca à inclusão da arqueologia, escreve o seguinte:
“ Com os temas comuns de tempo e de paisagem (Ingold, 1990), e com a sua preocupação mútua pelas formas materiais e simbólicas da vida humana, a antropologia e a arqueologia foram desde há muito encaradas como disciplinas irmãs, mesmo se nem sempre estiveram em diálogo. Sobretudo há uma afinidade óbvia entre a arqueologia e as histórias da arte e da arquitetura no que toca aos artefactos e edifícios da antiguidade. Num certo sentido, suponho eu, os arquitetos e os arqueológos poderiam ser encarados como iguais nos processos e opostos na temporalidade: afinal de contas o mesmo utensílio – o colherim – que o construtor usa para fabricar as formas arquitectónicas do futuro, é usado pelo arqueólogo, na escavação de um sítio, para revelar as formas do passado. Se um começa com os desenhos daquilo que é para erigir, o outro acaba com as plantas daquilo que foi exumado. Com todos estes paralelos e conexões, parecia sem dúvida bem natural que a arqueologia fosse junta às outras como o quarto A.
“Contudo, se a arqueologia se junta à antropologia não como uma ciência positiva mas como uma arte de pesquisa [“art of inquiry”], e, de igual modo, se se junta à arte e arquitetura concebidas mais como disciplinas do que como coleções de informações [“compendia”] de objetos para análises históricas, então os termos da integração têm de ser negociados, em dois aspectos. Primeiro, tal como fomos levados a distinguir a antropologia da etnografia, também, de igual modo, a arqueologia tem de ser distinguida do tipo de pré- ou proto-história que tem como objetivo chegar a reconstruções descritivas plausíveis da vida quotidiana no passado. Embora os prós e contras do uso das analogias etnográficas para colmatar os vazios de tais reconstruções tenham sido amplamente debatidos, esta questão – crucial para a relação entre a etnografia e a pré-história – não tem consequências especiais no que toca à relação entre a antropologia e a arqueologia. Segundo, temos de reconhecer que a prática nuclear da arqueologia, a escavação, compreendida no seu sentido mais amplo de um envolvimento com materiais enterrados que são portadores de vestígios da atividade humana passada, não pode continuar a ser reduzida a uma técnica de recolha de dados, assim como o não são as correspondentes práticas de observação participante em antropologia. Tal como a observação participante, a escavação é um modo de conhecer a partir de dentro [“knowing from the inside”]: uma correspondência entre atenção consciente e materiais ativos conduzida por mãos experientes “na ponta do colherim”. É a partir desta correspondência, e não da análise de “dados” insertos em enquadramentos “teóricos”, que o conhecimento arqueológico aumenta. Na prática da escavação, como Matt Edgeworth escreveu recentemente, os arqueólogos são forçados aseguir o corte – para “ver para onde ele vai, e em que direção nos leva” – não de forma passiva mas ativamente, tal como caçadores atrás da sua presa, sempre alerta e a responder a sinais visuais e tácteis num ambiente intrinsecamente variável (Edgeworth 2012, p. 78; Ingold, 2011, p. 251, nota 4).
Estas reflexões de Ingold davam, como sempre acontece com as que faz, “pano para mangas”. Destaquemos o que nos parece mais importante: o estatuto epistemológico da arqueologia (ciência, isto é, meio de aumentar o nosso conhecimento sobre a história, ou simples técnica de recolha de dados para se fazer essa história – mesmo que seja chamada pré ou proto-história?); e o papel substantivo da escavação como traço de união da arqueologia (ver a partir de dentro e seguindo os sinais que nos dá uma realidade em movimento, sempre a acontecer “na ponta do colherim”, e não articulação estéril de dados e teorias desgarrados uns dos outros à partida).
Entretanto, elas também deixam, como o autor bem sabe, muita outra problemática por abordar; não é sua intenção fazê-lo ali, naquele livro.
Por exemplo, se a antropologia começou por ser a análise dessa invenção ocidental que são as “sociedades primitivas”, cedo esse olhar reverteu para o próprio observador e seu contexto, e a antropologia passou a ser um modo distanciado (e ao mesmo tempo, paradoxalmente, “a partir de dentro”) de ver toda e qualquer realidade social, diferente da sociologia, por exemplo. De igual modo, se a arqueologia começou por ser uma “ciência auxiliar” da história, e muito principalmente da história antiga e pré-história, tornou-se depois num campo abrangente de todo o tempo histórico e de todo o espaço terrestre: uma forma de investigar “na ponta do colherim”, como diz Ingold. Ambas as disciplinas começaram pelo exótico e pelo descritivo, para se transformarem em estudos de qualquer realidade social de um ponto de vista interpretativo, à medida que se foram tentando libertar da camisa de forças positivista.
Sendo certo que a arqueologia incide sobre todo o espaço terrestre, procurando nele os traços da atividade humana (tanto na presença ou visibilidade plena, como Pompeia, como na escassez, ou mesmo ausência, como uma superfície onde nada ocorra, e que também, na aparente ou efetiva ausência de traços, tem de cair sob a alçada da explicação), é também verdade que essa tarefa é uma luta contra o tempo, tal como aliás acontece com muitas outras ciências de observação. De facto, o objecto de estudo degrada-se e evapora-se, por assim dizer, a uma velocidade maior do que a dinâmica das pesquisas. A maior parte das espécies que existiram sobre a superfície terrestre já desapareceram (problema da biologia e suas derivadas), a maior parte das “culturas” (e das línguas, por exemplo, de que eram portadoras) que floresceram já foi extinta (problema da antropologia mas também da arqueologia, etc.), e a arqueologia parece estar sempre a tentar lutar, utopicamente, contra essa erosão do tempo, à escala do planeta todo e da humanidade desde os seus míticos “inícios”.
O território é uma unidade convencional dessa luta. A arqueologia gostaria, utopicamente, de poder participar em igualdade de poderes com outros agentes de transformação dos espaços e dos lugares; mas afronta-se com direitos de propriedade e com interesses muito poderosos, que no máximo a encaram como o mais fraco e simbólico (no sentido de não ter força política) elo de uma cadeia de intervenientes. A ideia de desenvolvimento traduz, de facto, o triunfo universal da noção de propriedade, no sentido mercantil, sobre todos os outros, e em todas as esferas.
Assim, Ingold pode dar os seus cursos universitários e escrever os seus livros clarividentes sobre a óbvia articulação das disciplinas, arte, arquitetura, antropologia, arqueologia – tudo campos convencionais de abordagem/construção da realidade social. Mas a prática corrente passa ao lado dessas visões brilhantes, e é muito comezinha. Arte e arquitetura são mercados, que movimentam muito dinheiro; a antropologia e a arqueologia são a manifestação ocidental da nossa curiosidade pelo outro, pelo diferente (dobrada de uma grande vontade de o subordinar a nós), que vem dos gregos, se expandiu nas colonizações, e hoje se consuma na mundialização.


Junho 2013, Loures

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