PREÂMBULO
Quando falamos de ciência, assim só, pensamos logo nas "ciências duras" ou "exactas". Lamento estas compartimentações do saber especializado que herdámos e que se perpectuam. Em relação àquelas ciências, o meu único sentimento é de ignorância e de curiosidade. Mas uma curiosidade intimidada, ou dupla ignorância: é que até ignoro o que ignoro e logo antevejo o esforço imenso de, agora, sair dessa ignorância. Não porque deseje abarcar o todo, ou reduzir tudo à unidade: isso não faz obviamente sentido.
Dito isto, e pensando em muitos campos de conhecimento que não tenho, que não domino, como autênticas "florestas" onde precisaria de guia, de um guia permanente, e de um tempo de que já não disponho (estando assim amputado na minha experiência de forma radical), gostaria apenas de exarar o óbvio: qualquer campo de conhecimento é uma invenção do homem. Como tal, um produto histórico e contingente. Há portanto que evitar a pública e ingénua incensão da "ciência" como religião.
Porque vivemos milénios debaixo das religiões (que não eram opções, é nesse sentido que falo) e depois conseguimos construir a racionalidade científica, e porque as religiões nos oprimiram e em nome delas se liquidaram e liquidam milhões de seres humanos, e porque as ciências nos aumentam conforto e desenvolvem conhecimentos fascinantes e tecnologias muito úteis (na verdade, criando novos mundos, acrescentando realidade), há uma certa tendência popular e também tecnocrática a divinizar a ciência, o que é uma perversão. A ciência é maravilhosa sem precisar de ser religião.
Assim sendo, e assumindo a pequenez do meu ponto de vista (a de um arqueólogo que mesmo de arqueologia pouco sabe... mas o que seria saber muito? o saber das enciclopédias não interessa como fim em si) sobre o mundo, coloco-me do ponto de vista de quem conhece, de quem fabrica o conhecimento. E esse é o ser humano. A minha área prioritária é assim entender o processo de conhecimento por parte do ser humano, a verdade a que este aspira, e não a Verdade em si, a que aspiram as religiões.
A racionalidade, ligada à ideia de objectividade (distância entre um sujeito observador e um objecto observado, a partir de um conjunto de regras mutáveis mas em cada momento sancionadas por uma comunidade científica) é assim uma criação humana, e como tal põe-se-me (a mim, falo só de mim, mas julgo que muitos leitores dos TAE se identificarão com isto) como prioridade perceber o que permitiu a eclosão da ideia de ser humano (o "homem"), a ideia de natureza, a ideia de universo, a ideia de mundo observável, de experiência, etc. Ou seja, preciso de perceber que fenómeno é este, tão contingente, da própria crença em que assenta a objectividade.
A ideia de objectividade é um produto histórico, como qualquer outro conceito ou paradigma, ou ontologia. Não é uma realidade intemporal, não se pode ver como "o olhar de Deus". Deus é a nossa ilusão fundamental, de que temos de nos descartar porque é um écrã que tapa o mundo, e a “paixão do real” do mundo é própria do nosso tempo. Por isso a Igreja sempre reagiu à ciência, à racionalidade (de formas mais ou menos ostensivas ou sofisticadas, sempre procurando degluti-la teologicamente), porque qualquer religião se sabe ameaçada pela ciência. A ciência, pelo menos tendencialmente, baseia-se na fé no conhecimento humano, totalmente afastado de Deus, totalmente apartado da ideia de uma explicação última e transcendente.
E nesse sentido a ciência é uma imensa libertação. Não deixemos porém que ela se converta numa nova religião, em algo cujo horizonte é, ou pretende ser/apresentar-se como transcendente, como aliás se quer apresentar o próprio capitalismo, no seu desejo ávido de preencher todo o real pensável e sentível, como se não houvesse uma alternativa, um fora-dele.
Para que nos libertemos (e este nós é a maioria dos seres humanos que não fruem, substancialmente, de qualquer “progresso” em que dantes acreditávamos, situação desumana até à luz da nossa tradição cristã), assumamos que qualquer conhecimento é para a partilha e para a emancipação de todos os seres humanos, e que a necessária especialização é apenas um preço que temos de pagar. Assim, qualquer campo de experiência/conhecimento pode ser bom para se viver dignamente.
Não aceitemos o poder político das ciências "exactas", mas apenas o seu maravilhoso potencial de enriquecimento da experiência e de contributo para a felicidade e bem-estar dos seres humanos. É que esse poder económico e tecnológico, alheio às motivações últimas de todos os grandes cientistas (que, como artistas ou filófosos, têm o amor, o desejo, a pulsão constante da criação, da descoberta, da partilha, do debate, da liberdade), está muitas vezes ligado a uma certa soberba e a um menosprezo dos outros saberes. E, nesse sentido, a "ciência" pode ser uma nova forma de opressão, uma nova religião, um novo ópio, para usar uma expressão famosa.
Assim, a um nível interno, qualquer ciência, como qualquer actividade humana, é uma actividade política e social, feita e reproduzida num contexto determinado, financiada e autorizada (sancionada positivamente) por um conjunto de forças e por um conjunto de postulados/crenças. A ciência é um campo de forças como outro qualquer, com grandes disputas internas e por vezes muito opaco para os que estão de fora, para os não iniciados, iria dizer, para os excluídos. E, dado o sistema da especialização, excluídos somos todos, de algum modo, incluindo obviamente os próprios cientistas de cada ramo. Ninguém tem a voz de Deus.
A ciência constrói-se em comunidade, hoje globalizada, e segundo regras que em geral nem os próprios cientistas controlam, obviamente. Há possivelmente grande circulação de ideias/resultados em certas ciências, mas há também invisibilidade de outros saberes e até menorização de outras ciências, no campo de forças políticas que o capitalismo controla, ou tenta controlar. Há grandes interesses por detrás disto tudo, e só um ingénuo acreditaria numa ciência neutra, feita por uma equipa/pessoa abstracta, situada num espaço de comunicação com os seus pares, e ainda por cima suficientemente bondosa para querer comunicar tudo aos outros.
Qualquer informação implica desinformação; qualquer saber, segredo, a sua outra face. Qualquer proliferação de saber cria novos espaços de ignorância. Há uma economia política dos saberes, da sua fabricação, da sua partilha. Há uma luta para chegar mais depressa, para ganhar mais estatuto, para obter mais crédito, e esse crédito não é só o financiamento, é o capital social e cultural. E os cientistas mais inteligentes sabem que o seu fascínio está em saberem sair de vez em quando do campo especializado da ciência e, como cidadãos comuns, dirigirem-se ao público. A ciência, como a política, não precisa apenas de poder, mas também de glória, eco da antiga religião. Do carisma, ligado hoje à comunicação, aos media, que conformam o espaço público quase totalmente. Do poder difuso no sentido de Foucault, que se insinua como ideologia, quer dizer, como natural, evidente, como não tendo contraditório pensável.
No fundo, muito basicamente, qualquer cientista, como qualquer pessoa, quer seduzir o outro, o outro empírico (projecção de si próprio), e esse elemento transcendental, essa ficção extrema que é o Outro (para usar a terminologia de Lacan), um Outro laicizado, sim, mas ainda com laivos do antigo Deus, o pai de que o ser humano infantil carecia.
Sermos adultos, hoje, significa lutarmos por uma outra repartição/organização dos saberes/poderes, sem a ilusão de alguma vez sermos "Madres Teresas de Calcutá", pois sabemos que a generosidade absoluta é o egoísmo absoluto. O narcisismo não só é legítimo, mas absolutamente constitutivo de cada um de nós, cientista ou não.
Dito isto, e tendo em conta a conjuntura em que vivemos, só faço votos para que este não seja o último preâmbulo dos TAE e para que a revista sobreviva, bem como a SPAE. Apelo a todos os sócios para a sua responsabilidade. Sigam a nossa actividade no blogue e contribuam, trazendo nova vida à associação.
Vítor Oliveira Jorge
Porto, Outubro de 2011
Este volume contou com um apoio da FCT.
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