Voltando aos
4 As de Tim Ingold: algumas notas
“Foi na minha mudança de Manchester para Aberdeen
[1999] que aos três As de arte, arquitetura e antropologia se juntou o quarto,
arqueologia. Isto refletia em parte os meus próprios interesses, que durante muito
tempo estiveram na fronteira entre arqueologia e antropologia. Mas eu estava
também convencido de que nenhuma discussão da relação entre arte, arquitetura e
antropologia podia estar completa se a arqueologia não fosse também incluída.
Com os seus temas afins de tempo e paisagem (Ingold 1990) e a sua preocupação
mútua com as formas materiais e simbólicas da vida humana, a antropologia e a
arqueologia tinham desde há muito sido vistas como disciplinas irmãs, mesmo se
não o foram sempre em termos explícitos. Acima de tudo há uma afinidade óbvia
entre a arqueologia e as histórias quer da arte quer da arquitetura, nos seus
interesses comuns pelos artefactos e edifícios antigos. Num certo sentido,
suponho eu, os arquitetos e arqueólogos podiam ser encarados como iguais nos
seus procedimentos, embora opostos na questão temporal: afinal o mesmo
utensílio – o colherim – que o construtor usa para fabricar as formas do futuro
é usado pelo arqueólogo, na escavação de um sítio, para revelar as formas do
passado. Se um começa com desenhos daquilo que é preciso erguer, o outro
termina com plantas do que foi exumado. (...)
Contudo, se a arqueologia se junta à antropologia não
como uma ciência positiva mas como uma arte do inquérito [conceito específico
do autor, explicitado no conjunto do texto], e se de forma semelhante é para se
unir à arte e arquitetura concebidas como disciplinas em vez de compêndios de
objetos para uso histórico [é o que faz a história da arte] , então os termos
da ligação mútua têm de ser renegociados, em dois aspetos. Primeiro, assim como
fomos levados a distinguir a antropologia da etnografia, também, de igual modo,
a arqueologia tem de ser distinguida do tipo de pré- ou proto-historiografia
que tem como seu objetivo chegar a reconstruções plausíveis da vida quotidiana
no passado. Embora os prós e contras do uso de analogias etnográficas para
preencher os buracos de tais reconstruções tenham sido extensivamente
debatidos, este ponto – crucial para a relação entre etnografia e pré-história
– não tem consequências particulares na relação entre antropologia e
arqueologia. Segundo, temos de reconhecer que a prática nuclear da arqueologia
que é a escavação, entendida no sentido mais vasto como um engajamento com os
materiais imersos na terra que contêm traços da atividade humana passada, não
pode já ser reduzida a uma atividade de recolha de dados tal como o não pode a
prática correspondente da observação participante em antropologia. Tal como a
observação participante, a escavação é um meio de conhecer a partir de dentro:
uma correspondência entre atenção consciente e materiais ativos, estimulantes
conduzida por mãos hábeis “na ponta do colherim”. É a partir desta
correspondência, e não da análise de “dados” incluídos em molduras “teóricas”,
que o conhecimento arqueológico cresce. Na prática da escavação, como Matt
Edgeworth escreveu recentemente, os arqueólogos são obrigados a seguir o corte – “ver onde ele vai, e em
que direção nos leva” – não de forma passiva mas ativamente como caçadores
atrás da sua presa, sempre alerta e capazes de responder a dicas visuais e
tácteis num ambiente intrinsecamente variável (Edgeworth 2012, p. 78; v. Ingold
2011). Com efeito, o corte é uma linha de correspondência.” [conceito de
Ingold, explicitado por ele no mesmo texto, p. 7].
Tim Ingold, “Making. Anthropology, Archaeology, art
and Architecture”, London, Routledge, 2013, pp. 10 e 11).
Ingold designa “arte de inquérito” algo que
caracteriza também a atividade do artesão, ou seja, “(...) permitir ao
conhecimento crescer a partir do cadinho dos nossos engajamentos [envolvimentos]
práticos e de observação com os seres e as coisas à nossa volta.” (ib., p. 6).
E “correspondência” como algo de oposto à descrição do mundo, ou sua
representação, mas antes como uma atitude de abertura “àquilo que está a
acontecer ali para que nós, por nossa vez, possamos responder-lhe.” (ib., p.
7).
O objetivo do autor é extremamente ambicioso: trata-se
não de erguer uma qualquer obra inteligente, mas de tentar construir uma inteiramente nova configuração
dos saberes, uma filosofia completamente diferente da que em geral preside à
organização da nossa forma de (vi)ver o mundo, as disciplinas e a sua
“transmissão”.
Note-se que o autor procura sempre, em filigrana,
diluir os seres humanos no conjunto dos outros seres vivos (a especificidade
humana existe, mas como um ser ou organismo entre outros; as questões
“existenciais” ou subjetivas estão reduzidas a um mínimo; mesmo as diferenças
sociais ou os conflitos são pouco acentuados, em geral, na obra de um autor que
tem uma radicação marxista, entre outras. Ingold tenazmente evita, ao seu modo,
cair nas armadilhas das dicotomias formativas da nossa cultura, como humano-não
humano, natureza-cultura, matéria-espírito, etc.). E, por outro lado, complementarmente,
a realidade exterior aos indivíduos aparece normalmente dada como “mundo”, ou
seja, da forma mais abrangente e inclusiva possível.
Havendo esta aparente negação do inconsciente, da
pulsão, do desejo, as formas de atividade “científica” e “artística” tornam-se
disciplinas (modalidades de “inquérito”, no senti acima explicitado) que as
pessoas prosseguem como formas de viver o mundo por dentro, como seres imersos
no mundo (ao modo explicitado por Heidegger).
Há sim em Ingold um desejo intenso de diluir as fronteiras entre as
várias categorias que fomos construindo ao longo de séculos de pensamento e
ação, por forma a construir uma filosofia da percepção, da criatividade, da
improvisação e da habilidade [“skill”].
De quem? De um ser humano abstrato, afinal, mas que para Ingold é,
evidentemente, algo que corresponde a todo o ser humano, na sua “vida real”,
ser humano real esse de que o nosso pensamento “categorial” se afastou,
confundindo tudo. De modo que a tarefa a que este pensador brilhante, incansável, obstinado
como todo o grande pensador se dedica é a abrir-nos os olhos, retirando as
“ramelas conceptuais” que se nos foram acumulando, para ver a realidade de uma
forma límpida, atitude a que não falta uma certa poética e uma certa candura.
Há em Ingold um frenesim, se bem interpreto, que é a de um homem feliz, na sua
relação com os outros, com esse “mundo” abstrato que ele, académico
anti-académico, confortavelmente habita, desejoso de se afastar de toda a burocracia
que nos assola e perturba a ação de “puramente pensar”.
O entusiasmo com que fala dos seus cursos,
perfeitamente compreensível porque são certamente fascinantes (pelo que dele
li, e pelas conferências a que assisti) leva-nos porém a perguntar, felizes nós
também por haver pessoas assim, que vivem numa espécie de “outro mundo
maravilhoso”... e os seus estudantes, que terão ido fazer para a triste vida
que a sociedade dos nossos dias lhes reserva?... a Grã-Bretanha estará
certamente muito melhor que Portugal, nem se compara, mas também não é o
eldorado em que possam medrar muitos “praticantes”, como Ingold, de tarefas em
que conhecimento e ação cresçam como uma realidade una e gratificante cada ano
que passa. Isto é óptimo que aconteça, mas pelo caminho a ação crítica do
professor e investigador pode ficar um tanto atenuada, confinada àquilo que
certamente Ingold menos gostaria, mas é bem provável: ser mais um, raro, na
grande galeria dos “ilustres”.
Só uma última nota: o autor tem toda a pertinência
quando afirma que a arqueologia tem de se distinguir, de se separar, da
pré-história ou proto-história que quisesse reconstituir plausivelmente a vida
quotidiana do passado. Esse objetivo, que muitos perseguem, é insensato. A
arqueologia de que fala Ingold não é essa prática de reconstituição histórica,
quero crer, mas antes uma prática de campo que nos envolve diretamente com os
materiais (sedimentos, estruturas, objetos, o que seja), que nos leva a pensar
“na ponta do colherim”, sem a preocupação de ligar tudo, o mais depressa
possível, a um discurso historiográfico. Aqui reside uma das mensagens mais
importantes do autor: mais vai levar tempo para que uma grande maioria o
entenda.
Ou seja, a arqueologia é uma forma de se “engajar” com
a terra, com o terreno, com as estruturas mais ou menos visíveis que o povoam,
por forma a desbastá-lo quanto possível das “sujidades” que o tempo nele
acumulou, e – necessariamente de uma forma que corresponde sempre a opções de
equipa, que vão sendo improvisadas e negociadas ao longo do tempo – tentar
perceber como é que esse espaço escolhido para intervenção poderá ter sido
organizado no passado, nos variadíssimos passados que nele se imbricam.
Trata-se de uma atividade, de uma tarefa, que não visa diretamente reconstituir
nada, mas de um exercício de percepção, habilidade, imaginação, antecipação,
por forma sobretudo a descartar o que aquilo (aquele sítio, aquela zona
intervencionada) não foi, à medida que se avançam hipóteses plausíveis do que
pode ter sido. Afastando a ideia dicotómica das funcionalidades versus
simbolismos, afastando qualquer categoria óbvia apriorística, sem obsessão
interpretativa, mas seguindo aquilo que a “ponta do colherim” – um colherim
colectivo, pois se trata de um trabalho de equipa, e de uma performance sobre o
terreno que é também um trabalho dos corpos, uma performance comunitária – nos
indica. Uma palpitação que é também sentida por seres desejantes, sobre a
superfície da terra que é também uma superfície vivida, não apenas um pedaço de
terreno. Esse é o fascínio da arqueologia, que nada tem a ver com “mistérios”
nem decifração de engmas, mas com a paixão humana de nos envolvermos, de
tocarmos o que Lacan genialmente chamou “o Real”.
Vítor Oliveira Jorge
Loures, Junho de 2014
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